November 18th

Tinha-se abrigado mais uma vez no seu quarto. Como sempre, era o único sítio no qual se sentia ao abrigo dos gritos, dos insultos daquele homem que se nomava pai dele. Das mãos pesadas que lhe caiam em cima cada vez que uma discussão entre eles chegava ao rubro. Nessas alturas, a única coisa que queria era ser do tamanho dele, ter a tremenda força daquele homem para lhe poder retribuir todas as dores que este já lhe tinha proporcionado, tanto físicas como emocionais.
Fechou a porta atrás de si, deixou-a bater com toda a sua força, abafando um pouco a voz que vinha da cozinha. Tremia por todo o lado, não conseguia ficar quieto, deu voltas e voltas no quarto, mordeu os lábios, sentio uma vontade enorme de dar berros sem nexo, ao menos para tentar acalmar os nervos que pulavam de um lado para o outro dentro dele. E foi isso que acabou por fazer. Deu um pontapé do armário e gritou.
"SEU CABRÃO! UM DIA PARTO-TE AO MEIO!" Raiva em forma de palavras que se tinha acumulado ao longo destes anos. "Pensas que és quem para nos fazeres isto? Não és nada, não és ninguém!"
De repente ouviu passos, pés a baterem no chão, aproximando-se cada vez mais do seu quarto. Entrou em pânico, correu para fechar a porta à chave mas chegou tarde demais. P homem já tinha arrombado a porta. Com uma cara que expressava a de um monstro, dirigiu-se em direção do rapaz e pegou nele, agarrando no seu pescoço e empurrando-o contra a parede.
"DIZ LÁ O QUE ACABASTE DE DIZER À MINHA FRENTE, SEU CATRÁIO!" Veias vermelhas começaram a aparecer nos seus olhos, enquanto ele cada vez fazia mais força com a mão contra o pescoço do rapaz. Gabriel começou a sentir dificuldade em respirar. Tossiu e deixou um "Larga-me!" abafado escapar-lhe pelas cordas vogais.
"Ah, agora não dizes nada, hein? Achas que consegues fazer-me frente? Eu mando-te para a cova da mesma forma que te trouxe para este mundo."
Continuou a fazer força. Com murros fracos, Gabriel tentava desesperadamente libertar-se das garras do pai, mas cada vez sentia mais que não ia conseguir. Começou a sentir tudo à sua volta a rodar, como se estivesse prestes a desmaiar. Revirou os olhos e viu a sua mãe à porta, com ar de desespero, porém, não se mexia. Estava especada ao pé da porta como se paralizada por aquela visão. Foi aí que sentia o seu pescoço a ser libertado. Caiu ao chão.
"É para aprenderes que comigo não brincas. Para a próxima já sabes." Sentiu um cuspo cair-lhe em cima da face. Seguiu os pés do pai a andarem até à porta e a desaparecerem no corredor. Voltou a ouvir os gritos, agora de ambos adultos. Tentou levantar-se, mas sentia-se fraco. Limpou o cuspo com a parte de traz da sua mão. Voltou a sentir raiva, desta vez uma raiva descomunal. Raiva do pai, raiva da mãe, raiva essa que s etransformava em nojo, em desespero, e voltava a ser raiva, como se fosse um ciclo vicioso de sentimentos que nem deveriam ser sentidos por um rapaz da idade dele. Ouviu uma garrafa a partir, um estalo a ser dado, um grito de mulher a ser dado. Era naquela rotina que ele vivia, era aquele dia a dia que ele vivia. Levantou-se e dirigiu-se ao armário. Tirou de lá a maior mochila que tinha, abriu as gavetas todas e enfio as roupas todas na mala, pelo menos as roupas todas que cabiam. Mandou para cima da cama. Virou-se para a porta. Ficou paralizado. Aquela silhueta de criança à sua frente deixou-o sem saber o que fazer.
"Onde é que vais, Gabriel?" Ouvir aquela voz de anjo naquela altura era uma benção e ao mesmo tempo uma maldição.
"Minha boneca, não estavas a dormir?" perguntou, ao mesmo tempo que a pegou ao colo.
"Fizeram tanto barulho ... fiquei assustada. Fiz como tu disseste da outra vez, escondi-me debaixo da cama. Ela protegeu-me. Tal como tu disseste."
Esboçou um sorriso e beijou a sua irmã na testa. "Também protegeu o Senhor Buracos?" Perguntou, mostrando com o olhar o boneco esburacado que ela tinha debaixo dos braços."
"Sim. Ele está bem." A menina voltou a olhar para a mala que estava em cima da cama. "Vais-te embora?"
Aquela pergunta voltou a paralizá-lo. Não sabia o que ia responder, nem sequer o que estava prestes a fazer. Há semanas que planeava esta fuga, há semanas que tentava arranjar solução para todos os obstáculos que pudessem existir neste caminho, mas mesmo assim, não conseguiu responder a uma pergunta. O que ia fazer com ela? Esta alma inocente que não tinha culpa de nada? Saber que tinha de a deixar para trás dáva-lhe um desgosto enorme, mas sabia que se ficasse, ia acabar por fazer alguma asneira.
"Vou à procura da nossa casa, boneca. Lembras-te, eu disse-te que um dia iamos os dois viver juntos."
"Tenho de ir arranjar a minha mala também, então."
"Não. Eu tenho de ir à procura dela sozinho, sabes, eu ainda não sei onde é. Depois quando eu a encontrar, eu venho-te buscar. Está bem?"
"Vais-me deixar sozinha?"
Porque é que cada pergunta dela lhe parecia como um murro no estomago?
"Não estás sozinha, tens a mãe que gosta muito de ti." Beijou-lhe de novo a testa. "Vá, agora vai dormir, está bem? Já é tarde, tens de descançar."
Começaram ambos a chorar. "Não demores muito tempo." pediu-lhe, abraçando-o com os seus braços fininhos. Apertou-a contra ele. "Prometo."
Deixou-a ir parta o quarto e juntou o que lhe faltava. Documentos, carteira e afins. Pegou na mala e abriu a janela. Nunca esteve tão satisfeito de morar no rés-do-chão. Mandou o saco para o chão e saltou. Ninguém se apercebeu de nada. Começou a andar. A noite estava fria e o vento arrefecia-lhe a pele. Olhou para o relógio. 23:47.
"Ainda sou capaz de apanhar o último comboio." pensou. Agora só faltava saber era para onde.

(Não corrigi, é capaz de ter erros.)

2 comments:

  1. intenso, muito mesmo! gostei de ler :)

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  2. muito forte mesmo Jennifer. Beijinho :)

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